afeto e diferença
“Sem o reconhecimento no plano dos afetos, não se cria a solidariedade imprescindível à aproximação das diferenças...” (Muniz Sodré, em “Pensar Nagô”)
Deixar-se afetar. Perceber, com calma e carinho, como afetamos. Refletir sobre quais caminhos se abrem e se fecham a cada encontro. E ainda o que nos toma de desinteresse. E ainda o que arde. Vim falar da vida, do amor, do tempo, do espaço e dos abraços.
Um dia, indo ao mercado, alguém esperou junto contigo na fila do caixa e te acolheu nos olhares de impaciência. Numa caminhada, alguém andou por tempos bem perto, como se gostasse do teu ritmo. Numa interação virtual, alguém te fez sentir perto, calor de abraço e sorriso pra tela. Na festa, quando nada mais parecia brilhante, alguém te pediu o isqueiro, ou reclamou da música, puxando prosa. Na portaria, alguém segurou a porta, do prédio, ou do elevador, até que você chegasse. No semáforo, sinal fechado, alguém, no carro ao lado, escuta um som que te anima de súbito. Na praia, alguém, com sorriso no rosto, aceitou cuidar das tuas coisas, pra que você pudesse mergulhar. Mergulhar. Bons encontros acontecem a todo tempo. Afetos inaugurais. Co-criações de subjetividades.
Em muitas partes desconhecido, “mar de fogueirinhas”, segundo o homem da aldeia de Neguá, do conto de Galeano.
Primeiros minutos, horas ou dias. Alta probabilidade de alegria mútua. Corpos que se atraem no estranhamento. E se estranham na aproximação. O que nos apetece na diferença, é o que nos afirma, o que nos esconde ou o que nos constrói? E o que nos repele? Refletir, aqui, nesse campo, não passa pela busca do ideal, mas pela salvaguarda do prazer e da saúde em cada mergulho.
Do pouquinho de saúde, que, pro Guimarães, qualquer amor abarca. “A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda, é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou”.
O apego à narrativa do encontro, se esforça em dar o tom. O que somos? O que (não) podemos? Urge, por dentro, partir de consensos, pra dar corpo à narrativa de que “me realizo nesse encontro mais que em qualquer outro”. Se agarrar a pressupostos desejáveis não nos livrará da vida.